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sábado, 26 de janeiro de 2013

Velório no passeio público expõe o preço da vida em BH

Um morador das imediações, anônimo, acendeu a vela para marcar que ali havia morrido uma pessoa










Homem que vivia nas ruas da Savassi, Centro-Sul da capital, morre na calçada e corpo fica 7 horas à espera de um dos dois rabecões da Polícia Civil em serviço na Grande BH

Tá lá o corpo estendido no chão.” Parece letra de Aldir Blanc e João Bosco. Que o quê. Cena da vida. Retalho da metrópole que urge, num sopro de morte, em esquina da Savassi, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. Sob a marquise do arranha-céu de luxo, em um canto, o homem jaz entre os pequenos coqueiros ornamentais das ruas Gonçalves Dias e Paraíba. Do outro lado da rotatória, o busto de bronze do senador Fernando de Melo Viana (1878-1954) testemunha o triste fim de João Dionísio de Jesus, de 40.

Das 8h às 15h, coberto por um saco plástico, a demora do rabecão despertou a revolta de passantes, trabalhadores e moradores da região. “É quanto vale a vida, meu filho”, lamenta o aposentado Pedro Santana, de 73, rumo à Praça da Liberdade para caminhada de rotina. “É que o ser humano já não tem nenhum valor”, ressalta Elizabeth Matos, de 34. “Meu patrão chamou o Samu, na casa vizinha aqui. Eles chegaram rápido, mas o João já estava morto”, conta. 

A médica plantonista Daniella Viese, de 27, precisou apenas atravessar a rua para tentar socorrer o lavador de carros. “Quando chegamos, ele estava de lado, já sem nenhum sinal vital”, lamenta. Da casa de apoio do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), o João de Jesus era velho conhecido. Marcilene Lucas da Silva, de 35, funcionária da portaria, demonstra carinho pelo morador de rua. “Todo dia ele vinha aqui. De bom humor, andava sempre muito limpo. Guardava as coisas dele ali”, aponta tampão na calçada.

Um homem com o capacete no braço e olhar perdido não arreda o pé da esquina. Ricardo Silva de Oliveira, de 28, é sobrinho de João, o morto. Conta que a família tentou tirá-lo da rua. Em vão. “Ele dizia que estava bem assim.” Ricardo virou a noite como vigia em quarteirão vizinho. Passava sempre nos arredores para ter notícia do tio. Hoje, não pode falar com o irmão do pai. Motoboy durante o dia, Ricardo relembra a infância com o tio, “muito brincalhão”, que gostava de jogar bola. O sobrinho conta que o tio, ex-morador do Bairro Serra, enterrou o filho único em 2006 e a mãe, “muito querida”, em 2012. Segundo o vigilante, as duas perdas foram demais para o coração do tio, que se afundou na bebida. Marcilene, do Samu, conta que João de Jesus até tentou se recuperar numa clínica em Ibirité. “Mas não deu conta. Disse que lá era uma prisão. Até brigamos porque ele não queria se cuidar. Falei que ele parecia que queria morrer. Há um mês fizemos as pazes.”

Até o ano passado, João tinha um pequeno imóvel no alto da Serra. “Ele contou que vendeu o apartamentinho parcelado e que estava recebendo R$ 500 por mês”, diz Marcilene. Negócio confirmado pelo sobrinho Ricardo. “Ele podia não estar na rua… preferiu assim. Foi como quis viver”, diz. A doméstica Kátia Assis, entristecida com a morte de João, discreta, observa do outro lado da esquina. Aproveita a pausa no trabalho para homenagear o conhecido morto. “Era um rapaz como qualquer um de nós, que vivia do que dava conta de ter para comer. É triste ver um ser humano que se vai, assim, jogado às traças”, critica.

Da lanchonete da Rua Paraíba, do outro lado, bem em frente à cena de morte, vê-se o corpo estendido coberto pelo plástico fúnebre. De lá, vez por outra, alguém aponta o volume na esquina. Uma viatura da Polícia Militar faz a guarda. O sobrinho, silencioso e doído, espera providência. Alguns passam direto, indiferentes. Outros, os mais curiosos, estranham a presença da polícia. “O que foi?”, quer saber a doninha ao ver a polícia. O homem baixinho, de braços cruzados, próximo ao soldado, responde: “Um morto. Tá ali, debaixo do plástico”, aponta. A senhora não quis conversa. Apressada, seguiu pela Rua Gonçalves Dias.

Suspeita
Tina Lage, de 52 anos, agente de viagem, vizinha de calçada, é outra a lamentar o tempo de espera pelo rabecão. “É triste uma realidade dessa tão perto da gente. A gente tem notícia de fatos assim pelos jornais, mas quando acontece do nosso lado…”, diz. Para Tina, o João era sujeito de bem, “que até tomava conta da gente”. Amigo de João de Jesus, que não quer se identificar, levanta suspeita de envenenamento. “Ele disse que um outro morador de rua jurou meu tio de morte. Que ia colocar chumbinho na água dele. Como tem gente que o viu vomitar muito hoje cedo, pode ser, né!?”, revela Ricardo.

Míriam, moradora da Savassi, reforça o bom comportamento de João. A dona de casa, acompanhada pelas cadelas Pitita e Xuxa, comenta o jeito simpático do lavador de carros, “que sempre tratou muito bem os animais”. Para Míriam, não importa se o corpo é de rico ou de pobre, bom ou ruim. “Independentemente da identidade, merece respeito. Nunca vi tanto descaso. Tem mais de cinco horas que o corpo está ali”, indigna-se. Márcia Moreira também se revolta com a situação. “A culpa é do sistema”, pontua.

Depois de três telefonemas, Ricardo resolveu apelar para a imprensa. “É revoltante. Disseram, no 197, que são apenas dois carros. Um estava em Igarapé, o outro, em Ibirité. Falaram também que a prioridade é para caso de homicídio. Por meio de assessoria, a Polícia Civil dá conta de cinco carros para Belo Horizonte e região metropolitana. Dois, dizem, voltam hoje da manutenção e um outro ainda está na oficina. Às 15h, o rabecão chegou para dar rumo ao corpo de João de Jesus. Coletaram as impressões digitais do sujeito e o engavetaram, por fim.


FERIDA EXPOSTA 
“É lastimável. Um caso desse só expõe e desgasta o nome da instituição.” Quem afirma é o presidente do Sindicato dos Servidores da Polícia Civil de Minas Gerais (Sindpol-MG), Denilson Martins, de 41 anos. Para a liderança, a falta de autonomia da instituição, “engessada pela burocracia imposta pelo governo do estado”, é grande responsável pela situação crítica que BH e região metropolitana vivem com a falta de rabecões. Para Denilson, seriam necessários pelo menos 13 veículos, um por regional. “Desde maio de 2012, temos uma ação civil pública, em esfera federal, que denuncia os problemas do rabecão e do IML”, diz.
 

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